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quinta-feira, 17 de agosto de 2017

FARTISMO


Por Hugo Sales 

Segue abaixo o manifesto de um novo movimento. Um movimento que não tem nada de importante. Apenas é inútil, pois não manifesta nada, caro leitor. Está fundado o Fartismo. Peço que esse manifesto seja impresso em forma de panfleto para ser entregue na Avenida Brasil, na Rua do Comércio e principalmente, nas vielas solitárias da minha solidão, vielas as quais eu caminho, caminho, caminho e não chego a canto algum. E disso eu estou farto. Peço também que esse manifesto
seja feito em forma de outdoor e de folder, que apesar de serem os termos citados provenientes da língua inglesa, tornaram-se meus conhecidos no curso de Língua Portuguesa. Peço também encarecidamente: quem vier a achar algum desses panfletos jogados nas ruas a poluir, rasgue-o. Não leia. 

Fartismo sim. Uma cópia barata (bem barata) e desavergonhada do Desvairismo? Quem me dera. Eu sou apenas um pequeno mortal perto de Andrade. Lá, ele desvaira, enlouquece, quebra as regras; aqui, eu me canso, eu lamento, eu me abato diante de tudo que me extenua. 

Eu estou farto dos dias de sol que insiste em sair no leste dando a impressão de que tudo de bom vai acontecer, mas, a única coisa que ocorre é o calor copioso e infindado nesses dias que se morrem logo, ao poente. Eu estou cansado, meu amigo leitor, da esperança que vive, do verde da perseverança, do vermelho da luta. E mais ainda do azul que colore o céu e os prédios deste inferno. Eu só não me canso do preto e do branco. Eu estou cansadíssimo, caro, das moças que insistem em caprichar no desprezo. Dessas, eu estou cansado. Estou cansado das Luanas, Patrícias, Tainaras, Kellys, Anas, Elens e das Franciscas. Estou cansado deste sentimento agridoce de amar e sentir-se um só (e não dois, como deveria ser). Estou cansado desse sentimento que deixa mal, mas, outra hora, liberta.

A tevê me farta com sua programação inútil, com suas novelas despudoradas e obcenas que insistem em se firmar em horários familiares. Eu odeio a novela das seis, das sete, das nove. Odeio a novela jovem da maior rede de televisão brasileira e a forma como ela exibe um falso perfil da juventude. Eu estou cansado das malhações nas minhas tardes. Só não odeio a novela das oito, porque esta... Esta é real. Saibam todos que eu estou farto também do rádio, seja lá AM e FM, dos programas infindáveis que insistem em nos dar notícias ruins e tocar músicas ridículas. 

Farto dos livros na estante. Farto de poesia que me faz acreditar em amor. Saia de perto de mim, Lispector e Espanca. Saia Afastem-se António, Vinicius e Carlos. Eu não quero saber de amor. Eu quero saber do sangue... Do escarro de Augusto e do choro João (fiquei sabendo que o amor comeu-lho até o silêncio). Cansei também dos estudos. Eu estou farto da Literatura, da Linguística, da Semântica, Semiótica, Fonética e Fonologia. Enfastiado eu estou da Análise do Discurso, da Sintaxe, da Morfologia e dos Fundamentos da Educação. E, por favor, não me falem da Pragmática ou eu vou explodir.

Eu estou farto até do que eu julgava amar. Eu estou farto do rock n’ roll’, do country n’ western, do rhythm and blues. Acho que Edgar estava certo. Eu deveria mesmo buscar respostas as minhas perguntas, mas... Primeiro eu tenho que falar do meu cansaço. Eu estou farto do rap, do reggae, do techno, do trance. Eu só não estou cansado da bossa. E eu não entendi porque a bossa não me cansou ainda. Um dia a bossa me mata... Caros amigos eu estou cansado também da viola, do violoncelo e do violino. Cansado do violão, da viola caipira e da guitarra. Isso só pra citar os instrumentos de cordas. Eu estou cansado da flauta, da trompa e do flautin. Eu quero morrer quando eu ouço o som de um trompete. E eu estou farto, meus amigos, fartíssimo principalmente do baixo elétrico. Aquele maldito baixo elétrico vermelho que emite as boas novas que meu coração não quer saber, mas, que ele, baixo elétrico teimoso que é, insiste em emitir. Eu ainda não me fartei do trombone de vara. Tão imponente. E esquecido... Como também sou eu (esquecido, e nunca imponente). 

Eu estou afadigado, caro leitor. Estou afadigado da cidade de Altamira, a cidade do grande empreendimento. Estou cansado do caos, da desordem, do descuido e do descaso. Estou cansado dos imbecis que atropelam pessoas todos os dias, seja de Camaro ou de GM. Estou farto também do calor do asfalto altamirense, das filas de banco, das filas de mendigo, dos filhos da puta que deveriam zelar pela cidade. Estou cansado dos fumadores de maconha e dos cheiradores de pó do cais novo e principalmente, estou cansado de ver a morte andando ao meu lado como um fantasma que insiste em me abraçar. E eu, farto, porém fugaz, corro. No entanto, eu não estou farto de Brasil Novo, a cidade interiorana, e da sua pracinha humilde. E nem da poeira do campo de aviação que divide o Centro do eixão e suja a varanda de casa. 

Eu já disse uma vez em rodas de amigos ao bebericar cerveja e acolher com apetite aos aperitivos: não sou futurista. Andrade também não o era. Mas, afirmo-lhos: não sou modernista, não sou arcadista e nem neoclassicista. Não sou realista, naturalista e nem romantista. Não sou comunista e nem capitalista. Não sou atualista, não sou diarista e com toda certeza não sou fascista. Talvez eu seja um farsista. Talvez um artista. E com certeza um fartista. Farto de tudo isso. Farto inclusive, do lirismo, que Andrade exaltava. 

Eu estou tão farto de tudo que poderia aqui dar fim ao Fartismo. Não. Não quero. Quero fazer escola. Quero ter discípulos. Quero que esses discípulos procurem comigo o fim do Fartismo. Quero em minha frente pessoas que reclamem. Que se mostrem fartas, mas, que além de tudo, se disponham a ir comigo em busca do fim desse cansaço. Talvez até seja verdade que as escolas de arte se resumam “na imbecilidade de muitos para a vaidade de um só”, no entanto, quero encarecidamente que os imbecis que me cerquem percebam além desse texto non sense e busquem o descanso para tamanho cansaço, para que no fim, todos nós despojemos da vaidade pelo fim do Fartismo. Eu poderia ter citado Rousseau (se eu não tivesse tão farto dele). Evitaria tanta baboseira que eu escrevi e que vocês leram. “O homem nasceu livre e por toda a parte vive acorrentado”.



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Este trabalho integra a antologia Contemporâneos 2018 que será lançada pela Taba Cultural Editora entre dezembro/2017 e janeiro/2018.
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